O Amanhecer de Nyara



06/10/2024 5:30

Hoje é domingo, 06 de outubro de 2024, e minha filha mais nova, Nyara, de 11 anos, como de costume, decidiu que 5h30 da manhã é a hora perfeita para começar o dia. Não há despertador mais eficiente. Com uma força descomunal, me puxa da cama sem chance de negociação para mais alguns minutinhos de sono. E lá vou eu, meio sonâmbula, sendo arrastada até o banheiro. Sim, porque aqui o ritual matinal é implacável: inverno, verão, sol ou chuva, domingo a domingo, janeiro a janeiro, ela já acorda pronta para o seu primeiro banho do dia. Direto. Já tentei substituir esse hábito por outros como ir para o sofá da sala com travesseiro e manta como eu fazia na minha infância para assistir desenhos animados, mas o máximo que consegui é que ela vá ao banheiro para o primeiro xixi do dia, em seguida vai para o sofá e depois de uns 5 minutos já corre para o banho.

Touca de banho na cabeça, roupinha no chão, e lá está ela, com autonomia total. Eu? Eu fico ali de plantão, como boa guardiã, garantindo que nada vá parar na boca dela, porque a última coisa que quero é um sabonete "degustado". Mas eis que percebo: esqueci a toalha. Num pulo, corro para o quarto e, em poucos segundos de ausência, ela já transformou o banheiro num parque aquático: água por todos os lados, sabonete dentro do vaso sanitário e... ah, o papel higiênico! Perdemos mais um rolo. Mais encharcado que uma esponja.

"Fim do banho!" – anuncio com toda a convicção de quem sabe que só está começando o dia. Ela, eficiente como sempre, fecha o chuveiro sozinha, mas não sem antes chutar um pouco mais de água em mim, só pra garantir o meu banho também. Tiro a touca, enrolo na toalha, e vamos para o quarto secar e vestir. Nesse momento, eu aproveito para passar um óleo de lavanda em suas costas, apelando aos deuses da aromaterapia por um pouco de calmaria. Vamos ver se eles me ouvem. Passo óleo em mim também.

Com a Nyara devidamente vestida, ela corre para a sala, onde já se encontra sua manta e travesseiro para se instalar no sofá. Mas não por muito tempo. Corre para a cozinha e corro atrás. Lá vem ela, copo em mãos, me entregando com aquela comunicação silenciosa que só a gente entende. E eu já sei o que significa: é hora do seu desjejum. Estamos na fase da sustagem de manhã, mas mães de crianças com seletividade alimentar entenderão quando digo fase. Já passamos por fases de tapioca sem recheio, iogurte, arroz puro, casca de pão de sal…

São 5h55. Entrego o copo preparado, que há uns três meses voltou a ser o modelo com tampa dosadora para evitar acidentes. Os sofás da sala já estão suplicando aposentadoria de tanto molha e seca. Vou rapidamente ao quarto pendurar a toalha molhada e, quando volto… surpresa! Ela conseguiu abrir a tampa e jogou todo o conteúdo no sofá, molhando a capa que acabei de trocar, a manta, o travesseiro e, claro, a roupa recém-vestida. E lá vai ela, mais uma vez, direto para o banheiro. Isso mesmo, pessoal: às 6h da manhã, já estamos no segundo banho do dia. Ultimamente, são muitos banhos assim, porque o hiperfoco dela tem sido justamente esse. Antigamente erroneamente eu tentei chamar atenção dela pela quantidade de banhos seguidos sem “motivo” e a espertinha aprendeu a me dar os “motivos”. Sempre que surge uma oportunidade, ela entorna algo na roupa para correr para o banho. Se suja as mãos? Pronto, outra desculpa para o chuveiro. E quando não há nada por perto para se molhar, ela mesma cria a situação: faz pipi na roupa, ou até mesmo o número dois, porque aí o banho é garantido. Resultado, agora preciso desensinar que para banho precisa de motivo, ou ainda, caiu minha ficha que, o que aparentemente não era motivo para mim, poderia sim ser algum motivo para ela porém ainda não sabe como comunicar de outra forma.

Há muitos tempo venho pesquisando sobre hiperfocos. No caso de uma criança autista não verbal como a Nyara, o foco repetitivo no banho pode estar relacionado a fatores sensoriais. A água pode fornecer uma sensação agradável de conforto, alívio ou controle sensorial, o que pode ser especialmente atraente para algumas pessoas no espectro. As texturas, sons e sensações de estar no banho podem se tornar um interesse particular, levando a esse comportamento repetitivo.

Mas agora estou aprendendo novas estratégias para lidar com essas situações. Estou anotando tudo, tentando antecipar crises, e me esforço ao máximo para não reagir imediatamente a essas travessuras pois pode ser uma solicitação de atenção negativa que a gente acaba reforçando se reagir no impulso. Quando tudo se acalma, converso com ela, mesmo sem receber contato visual na maioria das vezes, explicando que é errado entornar as coisas no sofá e mostrando que devemos jogar o líquido do copo na pia da cozinha e quando ela quiser banho basta me mostrar a tolha que a levarei sem precisar molhar tudo ou se sujar para isso. Tenho aprendido que em meio às crises de nada adianta tentar orientar ou conter. Ainda não tive sucesso, mas entre o plantar e o colher tem o regar e esperar, não é mesmo?

Pequenos passos hoje, grandes vitórias amanhã, ou, conforme o antigo provérbio africano, “a lua move-se lentamente, mas cruza a cidade”.

Esse foi apenas o relato da nossa primeira hora do dia aqui em casa. Sei que muitas pessoas sentem falta das minhas narrativas, mas como vocês podem imaginar, à medida que nossas crianças crescem, fica cada vez mais difícil encontrar momentos tranquilos para escrever. Mas, se você leu até aqui, curta e deixe um coraçãozinho para mim na mensagem. Assim, saberei que esse tipo de conteúdo interessa a alguém e continuarei compartilhando outros momentos do nosso dia.

Muita luz para todas as pessoas que acompanham nossa jornada! Ubuntu!

Comentários

  1. Oi Jussara.
    Amei ler seu texto.
    Gosto muito de estudar sobre o desenvolvimento infantil e, atualmente, estou realizando estágio em um clínica, acompanhando crianças neuroatipicas nos atendimentos psicopedagógicos.
    Essa questão do hiperfoco é um ponto que também chama minha atenção.
    Desejo boas energias e bênçãos para você e para Nyara.

    filhadejose.blogspot.com
    anavirginias.blogspot.com

    ResponderExcluir

Postar um comentário